Alentejo, terra plural
Quando falamos do Alentejo costumamos refugiar-nos de imediato nos estereótipos habitualmente associados à região, imagens de terra plana e de espaços generosos, desenhos mentais de planícies suaves e ondulantes povoadas por sobreiros.
Uma representação permanente de terra soalheira com herdades imensas que se estendem até perder de vista numa região afagada por verões sufocantes e uma canícula insuportável. Para os amantes da região, o Alentejo é igualmente uma terra de gente digna e tranquila.
Quando a discussão se aproxima do vinho, os clichés tornam-se mais uma vez recorrentes no imaginário, prontos a falar sobre vinhos suaves e aveludados, quase sempre com incidência nos tintos, vinhos fáceis e frutados, sedutores e aprazíveis, cálidos e voluptuosos, embora sempre num registo fácil e guloso. Desde cedo habituámo-nos a julgar o Alentejo como um todo indivisível, como uma realidade única e monolítica, como uma paisagem constante e imutável. Habituámo-nos a olhar para o Alentejo como uma região onde o estilo dos vinhos seria monótono, monocórdico e mais ou menos comparável, sem cambiantes ou desvios drásticos, sem divergências assinaláveis. E, no entanto, dificilmente poderíamos estar mais equivocados sobre uma região.
O Alentejo e os seus vinhos estão longe da uniformidade e monotonia que muitos lhe querem associar. Uma realidade que na verdade não carece de grande explicação e que dificilmente poderia ser justa. Basta relembrar que o Alentejo representa quase um terço do território corpóreo do continente, área mais do que suficiente para potenciar as inúmeras variantes, alterações, tonalidades, matizes e cambiantes em que se divide a geografia nacional.
No Alentejo podemos descobrir climas de matriz claramente continental, com verões extremados, quentes e secos, a par de invernos gélidos. Mas poderemos também descobrir uma orla costeira de influência marítima explícita, com verões temperados e húmidos, seguidos por invernos suaves e relativamente amenos. No Alentejo encontramos áreas de serra e vales, zonas de montanha de encostas abruptas e escarpadas e territórios dominados pelas longas planícies. No Alentejo poderemos encontrar solos calcários e de barro, muito xisto, mármore granito areia ou solos pardos muito antigos.
No Alentejo podemos sofrer com a ardência do calor inclemente, com o inferno do tempo quente e seco sem ponta de humidade… ou refrescar-nos com a frescura das terras altas, com a humidade e a brisa retemperadora do alto das serras, com as brisas marítimas que refrescam as zonas costeiras. Podemos esbarrar em regiões ressequidas e sem gota de água superficial, territórios mal povoados de vida penosa, solos pobres e produtividade quase nula ou tropeçar em zonas húmidas e alagadas, zonas férteis e produtivas que se dedicam às culturas do arroz e milho. No Alentejo avistamos a sul lavouras de sequeiro, longas planuras quase despojadas de coberto vegetal, enquanto a norte poderemos descobrir manchas arborizadas, terras de pinhal e montados que afastam o estereótipo associado à região.
Podemos encontrar herdades impressionantes na extensão, vinhas colossais que se estendem até onde a vista alcança, ao mesmo tempo que avistamos pequenas hortas, vinhas de projectos pequenos que por vezes desafiam a lógica financeira. Podemos encontrar muitas vinhas jovens conduzidas de forma moderna e segundo as tendências da moda a par de vinhas muito velhas, algumas delas sem condução aparente e dispostas individualmente em taça, mantendo o aspecto de um classicismo desmesurado.
No Alentejo podemos encontrar vinhas recheadas por uma macedónia de castas regionais e provenientes de outras paragens, variedades nacionais ou estrangeiras, a par com algumas das resistentes regionais hoje quase perdidas e frequentemente desvalorizadas. Uma diversidade notável que não esconde uma preocupação natural sobre quantas variedades alentejanas terão sido perdidas durante a malfadada campanha cerealífera do Estado Novo? Mas também uma diversidade que tem vindo a ser preservada e resgatada do esquecimento graças ao empenho dedicado de um pequeno grupo de pequenos e grandes produtores da região que não poupam esforços para defender o património genético alentejano.
Falamos do Alentejo como se fosse uma só realidade, usamos a palavra no singular quando na verdade deveríamos falar do Alentejo no plural. Referimo-nos ao Alentejo como o grande sul, esquecendo-nos que geograficamente uma parte significativa do Alentejo reside no centro de Portugal. Basta pensar que Borba se situa a norte de Lisboa ou que Portalegre se situa mais a norte que a cidade de Santarém.
O Alentejo oferece muitas esquinas, muitas personalidades e muitos feitios. Algumas dessas faces, as menos tradicionais, raramente estão representadas no estereótipo do Alentejo, um Alentejo diferente que se aparta dos chavões do costume. Existe o Alentejo das searas e dos olivais, o Alentejo fresco mas seco, o Alentejo das terras do Norte mas também o Alentejo raiano de terras recentemente desbravadas que não tinham tradição na vinha. Existe o Alentejo das montanhas, as serras de solos rochosos e paupérrimos mas de clima fresco e húmido, de água pródiga e de longa tradição na vinha. E existe ainda um Alentejo da água farta e copiosa, o Alentejo da exuberância do verde e do barro onde a vinha cresce e floresce com a vista dos arrozais a pontuar o horizonte.
Um Alentejo de concepções divergentes que alarga os conceitos e fundamentos da região ilustra a diversidade da região que garante que os vinhos alentejanos estão longe de apresentar um discurso monocórdico.